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O desvio da cerveja e o indício bem fundamentado

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Obstinação e técnica salvando vidas

O motivo que levou a polícia a iniciar a investigação do mistério de danos à saúde pública e até caso de óbito pela cerveja contaminada, foi a intervenção de duas mulheres, Flávia Schayer e Camila Massardi, no âmago da questão. As duas com seus maridos hospitalizados e uma delas com seu pai levado à morte pelo dietilenoglicol.

Continuo tratando este assunto como um estudo de caso interessante no tocante à análise e tratamento de desvios da qualidade. O objetivo é estimular um pensar sobre a questão do ponto de vista sempre associado aos aspectos da garantia da qualidade.

Mexa-se, imediatamente

Na busca pelas razões do problema, a obstinação é uma postura que deve ser levada em conta quando estamos diante de casos de desvio da qualidade.

Quanto mais cedo tratarmos a questão do desvio, mais informações podem ser recolhidas para análise. Quanto mais nos aproximarmos daqueles envolvidos com o problema, independentemente de sua escolaridade, mais visões diferentes teremos sobre a mesma questão, facilitando a identificação dos indícios. Em outras palavras, um grupo de renomados especialistas em análise de desvio da qualidade em nenhuma hipótese pode desprezar uma opinião de um operador de máquina ou manipulador; se assim fizer, pode perder dados importantíssimos.

Desta forma fizeram as mulheres, facilitadas pela academia de uma delas, a Farmácia. Camila a farmacêutica, chegou até a Flávia e as duas iniciaram o processo investigativo.

Utilizaram um trabalho, a princípio, com duas ferramentas da qualidade. A saber, o “Brainstorming” e a “Coleta de dados”. Esteja eu errado quanto ao que aconteceu verdadeiramente, exploremos o assunto tão somente do ponto de vista do emprego das ferramentas.  Elas, provavelmente, muito debateram sobre o assunto (“Brainstorming”) e foram a campo por mais informações (“Coleta de dados”)!

A importância dos grupos multidisciplinares

Quando trabalhamos com grupos multidisciplinares na análise e no tratamento de desvios da qualidade, somamos forças com diferentes experiências. Isso confere ao grupo uma capacidade maior no trabalho. Em uma indústria de medicamentos, por exemplo, farmacêuticos, químicos, engenheiros são comuns em grupos de análise com excelentes resultados.

Isso, de certa forma, aconteceu no caso da cerveja e no levantamento do indício. Não foi a farmacêutica que fez uma das perguntas-chaves, em uma conversa com um parente de uma das vítimas. Foi a sua companheira de busca, a Flávia, que com apenas uma pergunta levantou uma hipótese crucial: “Ele tomou a Belorizontina?”.

Estudar os indícios

Correr com preenchimento de formulários de não-conformidades, com a indicação de causa raiz e propostas de ações, é algo não tão incomum. Isso porque, além de prazos bem determinados para a apresentação dos formulários, a pressão interna para a solução do problema não é pequena.  Temos de ser rápidos, mas efetivos.  Caso contrário, além de ver o desvio da qualidade acontecer novamente, vemos a nossa reputação como especialistas “ir para o buraco”!

Ao indicarmos um indício temos de ter referências cabíveis. Ao indicarmos não-conformidades temos de ter evidências objetivas (provas).

No caso da cerveja, foi exatamente estudando com seriedade a relação dos sintomas e a “coincidência Belorizontina”, que fez com que a farmacêutica pudesse levar para a polícia, logo de início, um alarme com fortes indícios de que o problema pudesse estar na cerveja.

É certo que a causa raiz, como assim chamamos a verdadeira causa que provocou o desvio da qualidade, ainda não foi descoberta. É certo que não é pequeno o número de variáveis que se apresenta para dificultar a resolução do problema, mas a qualidade de nossos técnicos, investigadores e de nossa polícia técnica chegará, com certeza, até a fonte que deu origem à não conformidade.

É certo que muitas vidas foram salvas por essas mulheres.

É certo também que um correta análise e tratamento de desvios não tem preço; tem valor, às vezes, pelo seu peso, muito difícil de ser medido.


Licença Creative Commons
O trabalho “O desvio da cerveja e o indício bem fundamentado” de Carlos Santarem está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-NãoComercial-SemDerivações 4.0 Internacional.

Veja o artigo “Cerveja não mata; o que mata é o desvio!

Saiba mais:

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Anvisa interdita todas cervejas produzidas pela Backer

Cerveja não mata; o que mata é o desvio!


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Veja mais

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Cerveja não mata; o que mata é o desvio!

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Uma visão sobre o caso de possível contaminação da cerveja por dietilenoglicol.

11/01/2020

A constatação inicial

Não, cerveja não mata! Nem mal faz, se consumida moderadamente! No entanto, dietilenoglicol mata!

O testemunho

Eu tenho uma larga experiência no segmento de produção de medicamentos, trabalhei em empresas de diferentes portes no mercado farmacêutico, mas tenho uma especialização em alimentos (bromatologia) que me permitiu viver a indústria de bebidas. No passado, atuei em uma grande e conceituada empresa produtora de cervejas. Naquela cervejaria de origem alemã, eu vi e vivi em um forte sistema da qualidade no qual todas as etapas de produção e as unidades de venda passavam por muitos controles em processo e somente iam para o mercado depois de rigorosos testes finais. Em outras palavras, sei bem que, seguindo-se os procedimentos e respeitando-se os parâmetros, a cerveja não mata! Nem o dietilenoglicol é matéria-prima de cerveja que se preze!

Não somente as cervejas, mas há décadas que a produção de bebidas no país, de maneira geral, é levada muito à sério. Falo com certa experiência, uma vez que construí uma empresa de consultoria em qualidade, produtividade e em boas práticas que pode constatar o quanto as questões da qualidade são importantes na área de bebidas, não somente para assegurar bons produtos para os consumidores, mas para aumentar a produtividade e gerar mais riqueza para os acionistas. Minha empresa foi criada em 1999; hoje reúno no meu portifólio várias indústrias, a maioria farmacêuticas, mas meu primeiro cliente foi uma grande multinacional de bebidas de origem francesa, com marcas conceituadas de vinhos, vodca e whisky, entre outros produtos. Estava eu lá, a cerca de duas décadas atrás, ministrando um treinamento sobre análise e tratamento de desvios com o emprego das ferramentas da qualidade! Empresas e empresários sérios no ramo de bebidas não matam. O dietilenoglicol pode matar e já matou muito, na forma de líquidos, em diferentes países, através inclusive da ingestão de xaropes.

Na história do dietilenoglicol muitos são os casos que levaram e ainda podem levar pessoas à morte. A seguir, elegi algumas situações para análise, no campo de desvios da qualidade.

O primeiro caso reportado de mortes

Na década de 30, o dietilenoglicol que é um éter de glicol, usado como anticongelante, foi empregado erradamente em um elixir pediátrico de sulfanilamida. Muitas crianças morreram e o químico Harold Watkins responsável pela formulação cometeu o suicídio. Aí temos um desvio provocado pelo descuido na fase de desenvolvimento, com graves consequências.

Um caso emblemático – um crime

Em outras partes do mundo, entretanto, o dietilenoglicol foi propositadamente adicionado aos xaropes com o objetivo de baratear a produção, mesmo sabendo os efeitos danosos de tal atitude. Um dos casos ocorreu na Nigéria, com o medicamento MyPikin quando morreram mais de 80 crianças após a ingestão do xarope. A título de conhecimento, Mypikin quer dizer “Meu pequenino”. Aí temos um desvio provocado por uma ação criminosa que levou à prisão o dono da empesa e a gerência da qualidade.

A possibilidade de falha no processo

Embora seu custo, atualmente, não seja vantajoso, o dietilenoglicol tem aplicação no processo de acelerar o resfriamento de produção de cerveja. Isso acontece em tubulações independentes, em serpentinas, que não entram em contato com o líquido. Pelo custo, o dietilenoglicol não é mais usado em muitas produções; no entanto, se usado, está lá, esperando por um desvio da qualidade! Um acidente que possa furar a tubulação e permita que a substância chegue à cerveja é algo que tem de ser vislumbrado em análises de risco. Aí, temos um desvio da qualidade provocado por uma falha no processo.

Um descuido com terceiros

De repente, a produção aumenta muito acima da previsão de vendas e acima também da capacidade instalada. Não há como produzir tantas unidades na mesma fábrica e uma das possibilidades é entregar nas mãos de terceiros parte da produção.

A terceirização da produção em locais de fabrico diferentes, e em condições de produção diferentes, pode fazer com que não haja a harmonização do processo. Aí, em uma fábrica, a refrigeração é feita com a mistura água e álcool e, em outra terceirizada, a refrigeração é feita utilizando-se o dietilenoglicol. Nessa última, se um acidente acontece, o dietilenoglicol mergulha na cerveja e provoca a contaminação.

Nesse caso, é certo que o desvio da qualidade é provocado por um sistema da qualidade bastante debilitado, principalmente, quanto a avaliação de fornecedores, entre eles, os terceiros que atuam com as operações de fases de fabricação.

A má-fé

Por último, a má-fé não pode deixar de ser descartada. Maldades com dietilenoglicol já foram feitas em muitos lugares.  Tenha sido uma atitude de má-fé, aquela que levou o veneno para a cerveja, convenhamos que ela não pode ser considerada como causa raiz da questão, em minha opinião. Isto porque, medidas de segurança deveriam ter sido tomadas para impedir ataques assim.

Aqueles que pensam que a sabotagem é a causa raiz, investigam, identificam o bandido, levam-no para a cadeia e imaginam que a situação não mais se repetirá, até que outro assassino repita o mesmo e fácil caminho. Aí temos um desvio cujas medidas estão nas ações preventivas de segurança.

Na verdade, é o maldito desvio que mata!


Licença Creative Commons

O trabalho “Cerveja não mata; o que mata é o desvio!” de Carlos Santarem está licenciado com uma Licença Creative Commons – Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional.


Acompanhamento do caso

05/01/2021
Caso Backer: vítimas lutam por recuperação um ano após início das investigações de contaminação em cerveja
A intoxicação atingiu 29 pessoas em Belo Horizonte. Dez morreram.
09/06/2020
Caso Backer: Polícia Civil indicia 11 pessoas após intoxicação por dietilenoglicol
Inquérito foi finalizado com 29 vítimas. Sete delas morreram.
Onze pessoas foram indiciadas pela Polícia Civil de Minas Gerais após a intoxicação por dietilenoglicol em cervejas da Backer
04/08/2020
Cervejaria Backer já sabia de contaminação nas bebidas antes de investigações
Fichas de produção de cervejas da Backer apreendidas na sede da cervejaria, nessa manhã, apontam que a empresa já sabia sobre o vazamento de glicol nas bebidas.
Cervejaria Backer é multada em R$ 5 milhões após processo
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05/05/2022

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